Um dos maiores letristas da música brasileira de todos os tempos, o carioca Aldir Blanc também foi uma das lamentáveis perdas da Covid-19. Tendo construído a carreira com cerca de 50 parceiros, em mais de 500 composições, mas nos momentos mais grandiosos a quatro mãos com João Bosco, Aldir foi capaz de proezas como os versos de “Bala com Bala”, “O Mestre-sala dos Mares”, “Dois pra Lá, Dois pra Cá”, “De Frente pro Crime”, “Kid Cavaquinho”, “Incompatibilidade de Gênios”, “O Ronco da Cuíca”, “Transversal do Tempo”, “Corsário” e “Canção do agreste”. Mas vai ser lembrado no Olimpo principalmente pela icônica “O Bêbado e a Equilibrista” (“Caía/ a tarde feito um viaduto…”), que nos remete para o desejo de bonança pós-ditadura, considerada como o hino da anistia.

O relicário de Aldir tem muitas outras pérolas graúdas, e joias de muito valor, grande parte delas conhecidas na voz soberba da pimentinha Elis Regina. Observador dos tipos e das pessoas, e principalmente da alma da zona norte do Rio, teve algumas canções mega popularizadas como temas de abertura das novelas da Globo, o que sempre foi garantia de muita execução e vendas. Aliás, o compositor foi um dos mais agraciados com esse espaço nobre. Exemplos são “A viagem”(1994), da novela homônima, na interpretação do Roupa Nova; a canção “Suave Veneno” (1999), na voz de Nana Caymmi, da novela de mesmo nome; e “Chocolate Com Pimenta”(2003), na voz de Deborah Blando.

Outras músicas que Aldir compôs ao lado de João Bosco e foram trilhas de novelas são “Doces Olheiras” (Gabriela/1975), “Coração Agreste” (Tieta/ 1989) e “Confins” (Renascer/1993).

O fato de Aldir ser formado em medicina, com especialização em psiquiatria, colaborou certamente para que tivesse uma fina percepção humanística em suas letras, que tangem sempre a universalidade a partir de situações e personagens muito característicos das rodas de bar cariocas. Todavia, paradoxalmente, não ajudou muito a controlar os humores sociais quando se deparou com um grave acidente de automóvel, em 1991, que prejudicou seus movimentos da perna esquerda. Acabou desenvolvendo uma fobia social, que derivou para a reclusão. Salgueirense da Tijuca, vascaíno e boêmio inveterado, em 2010, ao fazer exames de rotina, descobriu sofrer de diabetes tipo 2 e pressão alta, e foi convencido a abandonar o tabagismo e o álcool. Fato que representou uma pá de cal na sua convivência com a fauna dos personagens que habitam suas crônicas .

Mesmo erigindo uma trajetória coberta de glórias, o grande compositor não conseguiu amealhar um patrimônio que lhe amparasse nos anos de ocaso. Não tinha plano de saúde nem recursos para pagar hospital particular. Assim, após duas semanas na UTI de um hospital público, foi mais uma vítima da pandemia.

Com seus inseparáveis cigarro, livros e violão, Blanc era um cronista raro do universo carioca e brasileiro.

Ficam de herança sua arte e as poesias nos livros, nos discos e na vida que viveu.

E em canções preciosas como “Bijuterias”, encaixada originalmente na abertura da novela “O Astro” (1977), e que foi regravada para seu remake, em 2011, interpretada ambas as vezes pelo autor da música, João Bosco,

Os famosos primeiros versos, “Minha pedra é ametista/ minha cor, o amarelo”, há mais de 30 anos começavam a habitar o imaginário do público, que diariamente grudava na telinha para assistir a mais um capítulo do telefolhetim. Embalada pela voz e melodia de João Bosco, a canção-tema da histórica trama de Janete Clair é marca registrada não só da teledramaturgia, como também da própria música popular brasileira.

Por ocasião do relançamento da novela, João Bosco revelou que a canção, feita em parceria com Aldir Blanc, foi parar na abertura da novela a partir de uma fascinante coincidência. “Ao longo desses anos, temos feito várias canções especialmente para a teledramaturgia. Mas, às vezes, uma música composta antes da trama é aproveitada como tema de abertura exatamente pela coincidência da história de ambas. Foi o que aconteceu com ‘O Astro’ e a canção ‘Bijuterias’. Estávamos em estúdio gravando o disco ‘Tiro de Misericórdia’. Já na fase de mixagem, recebemos a visita do produtor Guto Graça Mello. Ele estava trabalhando na produção musical da nova novela de Janete Clair e pediu para ouvir o que tínhamos gravado. Quando tocamos ‘Bijuterias’, na mesma hora disse que a canção tinha uma grande afinidade com a trama. Guto levou a música e foi assim que ela se tornou o tema de abertura da novela”. —/–

Para a versão mais recente, a voz de João Bosco foi propositalmente alterada. Seguindo a ideia do produtor Mariozinho Rocha, foi baixado um semitom da música para deixá-la mais grave, e deu certo. Ficou ótimo, como se ele cantasse o tema hoje em dia.

“Bijuterias” mexe com a relação do público com o misticismo: a crença naquilo que não vemos e que acaba nos movendo. Trata-se de um poderoso samba canção que, em seus versos, rima “dentista” com “ametista” e “artista”.

O interlocutor se vê esperançoso que o alinhamento dos planetas, quando chegar o mês de setembro, possa finalmente lhe trazer a companhia tão desejada. Cheio de crendices astrológicas, se fia na pedra do signo, na cor indicada pelo astro regente, pelo seu julgamento de sinceridade, e reconhecer que tem alma de artista, além de problemas como tremores nas mãos, tiques e manias, denotativos de ansiedade. Em meio a essas inquietações todas, emerge soberana a urgência odontológica, que se intromete entre todas as expectativas oníricas.

Uma brincadeira minimalista em forma de verso, que retrata bem o comportamento de uma parcela significativa da população, que sempre evoca fatores astrológicos e esotéricos para determinar seus destinos. Uma última inesperada referência é da loja de departamento Sloper, que povoava o imaginário da classe média dos anos 50 e 60 no Rio de Janeiro, principalmente por suas joias elegantes e de bom gosto.

O “dentista” comparece para baixar a bola até o terreno cientificista, realista, incontornável, e faz um contraponto divertido nesta composição interessante, bem tramada e casada com melodia à perfeição. Mais uma pequena obra-prima desse fino letrista e cronista inesquecível. Vale relembrar a letra integralmente:

Bijuterias”, de João Bosco e Aldir Blanc, com João Bosco

Em setembro
Se Vênus me ajudar
Virá alguém
Eu sou de virgem
E só de imaginar
Me dá vertigem
Minha pedra é ametista
Minha cor, o amarelo
Mas sou sincero
Necessito ir urgente ao dentista
Tenho alma de artista
E tremores nas mãos

Ao meu bem mostrarei
No coração, um sopro e uma ilusão
Eu sei
Na idade em que estou
Aparecem os tiques, as manias
Transparentes
Transparentes feito bijuterias
Pelas vitrines
Da Sloper da alma